Uma prática educacional baseada em evidências: Resposta à Intervenção

Quando apresentamos os novos critérios do DSM-V para o diagnóstico dos Transtornos de Aprendizagem, uma das mudanças citadas foi a obrigatoriedade de verificar a persistência de um prejuízo acadêmico por meio de procedimentos de resposta à intervenção. Uma vez que a entidade que elabora do DSM-V é a Associação Americana de Psiquiatria (APA), a adoção deste critério não implicou na implantação de programas específicos de Resposta à Intervenção (Response to Intervention – RTI), já que esta é uma prática comum e frequente nos Estados Unidos.

Porém, quantos de nós, brasileiros, sabem o que é RTI? Do que se trata? Quais são as finalidades e a relevância da RTI? Como viabilizar a sua aplicação? Vamos explorar este assunto no texto de hoje.

Na década de 1980, nos USA, psicólogos educacionais e educadores sentiram a necessidade de modificar as práticas de trabalho em sala de aula junto às crianças que apresentavam dificuldades e atrasos para aprender. Havia uma insatisfação com o modelo tradicional de encaminhamento de alunos para avaliações psicológica e multidisciplinares, uma vez que trata-se de um processo lento, caro e que respondia de maneira superficial às necessidades e angústias dos professores. Os relatórios dos especialistas, com linguagem técnica e possível diagnóstico, não forneciam informações muito precisas sobre como realizar as acomodações escolares necessárias dos alunos com necessidades educacionais especiais. Depois de muitas discussões, pesquisas e propostas, com a publicação do Individual with Disabilities Educational Act (IDEA, 2004), todos os estados americanos adotam a RTI como política pública educacional.

Neste contexto, a RTI é definida como um “sistema integrado de detecção precoce em progressivos níveis de apoio aos alunos”. É realizada por meio do fornecimento de intervenções cada vez mais intensivas e baseadas no progresso da resposta de cada aluno.

Os objetivos da RTI são:

– Garantir a aprendizagem de todas as crianças com práticas baseadas em evidências científicas, eliminando déficits curriculares e metodologias de instrução de baixa qualidade.

– Fornecer critérios claros de identificação de crianças com dificuldades/transtornos de aprendizagem e demais necessidades educacionais especiais.

Os pressupostos da RTI são:

– Oferecer ensino eficaz ao maior número de pessoas.

– Prevenir as dificuldades de aprendizagem por meio da garantia de adequação do currículo e instruções fornecidas.

– Fornecer atendimento diferenciado de alunos com dificuldades de aprendizagem.

– Perspectiva ecológica, considerando a contribuição das variáveis entre as crianças da sala de aula, além das variáveis instrucionais.

– Estabelecer de programas governamentais de intervenção nas escolas.

A prevenção das dificuldades de aprendizagem é extremamente relevante para garantir maiores chances de sucesso acadêmico e aceleramento na aprendizagem, uma vez que as propriedades de neuroplasticidade que são maiores na 1ª infância. Por outro lado, a perspectiva tradicional de avaliação e tratamento das DA pressupõem o atendimento tardio (wait-to-fail) e por isso pode causar maiores prejuízos acadêmicos e consequências emocionais negativas para a criança e sua família. Para que os objetivos da RTI sejam alcançado, é necessário realizar uma formação dos professores que contemple instruções de alta qualidade, estratégias curriculares baseadas em evidências científicas e práticas de avaliação constante dos alunos para monitoramento dos progressos.

Os benefícios da RTI são:

– Instrução de alta qualidade e ensino com fundamentação científica e eficácia comprovada

– Não requer mão de obra especializada externa à escola.

– Não depende de materiais ou outros recursos que a escola não disponha

– Medida eficaz para a aprendizagem da maioria dos alunos

Como operacionalizar a RTI? As figuras abaixo ilustram as diferentes camadas (também denominadas de fases) e o fluxo de trabalho que orienta a realização de diferentes níveis de intervenção para cada aluno:

RTI camadasRTI respostas

Na fase 1, deve haver a capacitação de professores com reestruturação didática das aulas voltadas à habilidades-alvo do programa (alfabetização, aritmética, auto-regulação e funções executivas, entre outros). É importante que nesse período sejam esclarecidos e discutidos conceitos e práticas pedagógicas fundamentadas cientificamente na perspectiva das neurociências. Também são planejadas e elaboradas as atividades práticas envolvendo as sub-habilidades do programa (ex: apresentação multissensorial de letras, consciência fonológica, expansão de vocabulário). A aplicação da fase 1 é sempre feita em sala de aula e envolve instruções explícitas com a participação de todos os alunos, com duração média de 3 dias/semana e período de 20 minutos/dia. Estima-se que 80% dos alunos de uma turma aprendam de maneira plena neste nível.

Na camada 2, a intervenção é remediativa e ocorre em pequenos grupos (3-5 alunos), geralmente em período contra-turno às aulas. Estima-se que 15% dos alunos de uma turma possa necessitar desta etapa de intervenção. É recomendada frequência de 3 dias/semana durante 40 minutos e no período de 9 a 12 semanas. Nesta etapa, as mesmas habilidades ensinadas na fase 1 e que estão ainda em atraso nestes alunos são estimuladas de maneira explícita e sistemática com maior intensidade. É sempre importante considerar que o ensino deve também ser feito com aumento gradual de complexidade. Sugere-se que o monitoramento seja feito semanalmente e mensalmente

Por fim, na camada 3, estão os alunos que não responderam de forma adequada às intervenções da fase 2 e, por isso, possuem déficits de aprendizagem que não podem ser explicados por falta de instrução adequada ou lentidão para aprender. Estes alunos são encaminhados para avaliação multidisciplinar e acompanhamento individualizado, ao mesmo tempo em que são elegíveis para serviços de educação especial. Estima-se que 5% dos alunos de uma turma estejam neste panorama.

Podemos então considerar e concluir que a RTI é um modelo interessante para proporcionar a oportunidade de estudantes com dificuldades serem identificados e cuidadosamente monitorados. Trata-se de um método que melhora a aprendizagem no ensino geral com intervenções baseadas em evidência científica e reduz o número de encaminhamentos desnecessários para avaliações diagnósticas. Alguns grupos de pesquisa têm realizado trabalhos de aplicação e avaliação da eficácia da RTI, que pode muito acrescentar para a melhoria da qualidade da educação e da identificação de crianças com dificuldades e transtornos da aprendizagem no Brasil.

Fontes:

– Feifer, S.G.; Toffalo, D.A.D. (2007). Integrating RTI with Cognitive Neuropsychology: A Scientific Approach to Reading. School Neuropsych Press, Incorporated.

– Almeida, R.P. (2012). Prevenção e Remediação das Dificuldades de Aprendizagem: adaptação do modelo de Resposta à Intervenção em uma amostra brasileira. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo. Guarulhos.

Sobre Sinapses e Aprendizagem

É muito provável que os leitores que estão acompanhando o blog Sinapse-Aprender tenham diferentes níveis de conhecimento em neurociências. Alguns podem ter cursado disciplinas de neuroanatomia e neurofisiologia na graduação e/ou pós-graduação, enquanto tiveram contato com o Sistema Nervoso apenas no Ensino Médio ou, ainda, alguns podem ter expandido os conhecimentos em neurociências como autodidatas. Por isso, o texto de hoje busca explorar melhor o conceito de sinapses e o que elas têm a ver com aprendizagem. Afinal, o que são as sinapses? Como ocorrem e quais são suas funções?

Antes de falar delas, vamos relembrar sobre os neurônios. Neurônios são as principais unidades funcionais do Sistema Nervoso, pois são responsáveis pela transmissão de impulsos nervosos. São células constituídas de um corpo celular, um núcleo celular, e 2 tipos de extensões: dendritos (receptores de mensagens conectados ao corpo celular) e axônios (prolongamentos que transmitem informações eletroquímicas). Os neurônios foram visualizados pela primeira vez pelo cientista italiano Camilo Golgi, que desenvolveu uma técnica de coloração que foi melhor explorada posteriormente pelo anatomista espanhol Ramon y Cajal. A seguir, você pode observar uma imagem produzida por Ramon y Cajal e uma figura com as estruturas de um neurônio.

150px-PurkinjeCell                       esquemaNeuronio

Os neurônios podem ser classificados segundo sua função em três tipos: sensoriais, motores e interneurônios. Neurônios sensoriais (também chamados aferentes) conduzem informações dos nervos periféricos em direção ao Sistema Nervosos Central (SNC). Neurônios motores (chamados de eferentes) conduzem informações do SNC em direção à periferia. Por fim, os interneurônios são neurônios que se conectam neurônios sensoriais e motores e possuem função integradora, sendo localizados na medula espinal. Os neurônios também são classificados quanto aos prolongamentos do corpo celular, sendo multipolares (com vários dendritos e um axônio), bipolares (com um prolongamento axônio e um dendrito) e pseudo-unipolares (com um único prolongamento que é axônio em uma extremidade e dendrito em outra).

Uma sinapse é um espaço de junção especializada no qual ocorre a comunicação entre dois neurônios. É através da sinapse que o potencial de ação (impulso elétrico que leva uma informação) é transmitido. O disparo do impulso elétrico de um neurônio influencia a atividade dos que estão conectados pelas sinapses. A célula nervosa que transmite o sinal é chamada se célula pré-sináptica, enquanto que a célula que recebe o sinal é um neurônio pós-sináptico. É importante ressaltar que não ocorre contato físico entre os neurônios, pois a transmissão de impulsos elétricos se dá via junções comunicantes (nas sinapses elétricas) e via fendas sinápticas (nas sinapses químicas). Veja abaixo uma representação das sinapses elétricas e químicas:

sinapses

Nas sinapses elétricas o trânsito de íons por junções especializadas entre as células permite a passagem do potencial de ação de uma célula para outra. A rapidez na transmissão do impulso elétrico entre os neurônios é muito grande, sendo ideal para comportamentos que exigem rapidez de resposta. São mais encontradas em neurônios do tronco encefálico (para controle do ritmo da respiração, secreção de hormônios na corrente sanguínea) e também estão em abundância nos músculos cardíacos e lisos.

Sinapses químicas são aquelas nas quais o potencial de ação é transmitido através de proteínas chamadas de neurotransmissores. Os neurotransmissores saem da célula, caem na fenda sináptica e interagem com a célula pós-sináptica, que capta os neurotransmissores por meio de receptores. Esse tipo de sinapse é mais frequentemente encontrada em todo o sistema nervoso. As sinapses também podem ser classificadas em excitatórias (nas quais a membrana pós-sináptica é despolarizada) ou inibitórias (que causam a hiperpolarização da membrana pós-sináptica).

E agora, o que neurônios e sinapses têm a ver com a aprendizagem¿ Aprender é uma função cognitiva complexa que sempre implica em alterações neurológicas celulares, elétricas e químicas. A formação das sinapses está muito relacionada à capacidade de aprender, pois, em interação com o ambiente, as estruturas do sistema nervoso processam novas informações criando, fortalecendo e também enfraquecendo sinapses. O aperfeiçoamento de uma habilidade conforme treino e memorização, tal como tocar um instrumento ou ler, implica no fortalecimento de algumas sinapses e no aumento da velocidade de processamento e execução. Ao mesmo tempo, se uma habilidade é pouco praticada ou não é treinada ao longo do tempo, as sinapses relacionadas são enfraquecidas e até deixam de existir.

A velocidade da criação de novas sinapses pode nos surpreender. Em 2009, um estudo publicado na famosa revista científica Nature sobre aprendizagem motora em camundongos verificou que, em menos de uma hora após o início do condicionamento, já ocorria uma produção robusta de sinapses no córtex motor dos animais. Os pesquisadores verificaram aumento da formação espinhas dendríticas nos neurônios do córtex motor. As espinhas dendríticas formam sinapses com outras células nervosas de áreas envolvidas na memória motora e nos movimentos dos músculos. Ao mesmo tempo em que foi verificado aumento do número de dendritos, também houve eliminação de dendritos pré-existentes e equilíbrio da densidade dendrítica no processo de plasticidade neuronal. Estes processos de aprendizagem motora, especialmente, podem imprimir memórias permanentes no cérebro e explicam porque quando aprendemos a andar de bicicleta, não perdemos esta habilidade mesmo sem anos de prática.

Porém, para o cérebro, maior quantidade de sinapses não implica necessariamente em melhor aprendizagem. Outro estudo, publicado na revista Neuron, verificou em animais o papel de uma proteína que conecta as sinapses, a SynCAM1. Enquanto um grupo de animais permaneceu com níveis normais da proteína, outro grupo recebeu maiores quantidades da SynCAM1 e consequentemente tiveram número de sinapses aumentado. Quando os grupos foram comparados em tarefas de aprendizagem, observou-se que os animais mostrou sem SynCAM1 tiveram um melhor aprendizado do que os animais com níveis normais da proteína. O excesso desta proteína torna mais difícil a eliminação de conexões ineficazes ou redundantes. Portanto, o fortalecimento das sinapses pode ser mais importante para o aperfeiçoamento de um comportamento do que a criação de novas conexões, que podem lentificar ou enfraquecer o aprendizado.

Nos casos de alterações do desenvolvimento e lesões neurológicas, nos quais determinadas áreas do cérebro encontram-se alteradas, trabalhos de intervenção cognitiva, comportamental, educacional e funcional são essenciais para formar e fortalecer novas redes de sinapses, promovendo consequentemente melhor capacidade de aprendizagem e autonomia. Por isso, vamos procurar sempre exercitar nossas sinapses para aprender e ensinar melhor a nós mesmos e aos que estão ao nosso redor!

 Fontes:

– Kandel, E. (2008). Principles of Neural Science. NY: McGraw Hill.

– Robbins, E.N.; Krupp, A.J.; Arce, K.P.; Ghosh, A.K.; Fogel, A.I.; Boucard, A.; Su¨ dhof, T.C.; Stein, V.; Biederer, T. (2010). SynCAM1 adhesion dynamically regulates synapse number and impacts plasticity and learning. Neuron, 68, 894–906.

– Xu,T.;Yu, X.; Perlik, A.J.; Tobin, W.F.; Zweig, J.A.; Tennant, K.; Jones, T.; Zuo, Y. (2009). Rapid formation and selective stabilization of synapses for enduring motor memories. Nature, 462, 915-919.

Novos critérios diagnósticos dos Transtornos da Aprendizagem – Parte 2

Neste texto, vamos continuar apresentando e discutindo as mudanças que o DSM 5 propõe para o diagnóstico dos Transtornos de Aprendizagem. Uma grande preocupação em torno da avaliação de uma suspeita de TA; eu ousaria dizer que é a maior de todas entre os clínicos, pesquisadores, educadores e pais; é saber como distinguir se o prejuízo acadêmico é de fato decorrente de uma alteração do neurodesenvolvimento ou se é causado por outros fatores, tais como os emocionais e/ou psicossociais. Responder a esta pergunta define o diagnóstico e traz implicações muito sérias para as dimensões emocional, familiar, escolar e social da criança e da família afetada. É sabido que a criança com TA deve apresentar um desempenho acadêmico significativamente inferior ao esperado para a sua faixa etária e potencial cognitivo, porém, ao mesmo tempo, também sabemos que muitas crianças com prejuízo acadêmico não possuem um TA.

Como separar o joio do trigo? Como garantir que os baixos resultados de uma avaliação psicoeducacional são ocasionais ou tenderão a persistir devido a uma condição permanente? Cá entre nós, no contexto brasileiro, em muitos casos é bastante difícil garantir que uma criança de 10 ou 11 anos com leitura muito ruim tenha sido submetida a um processo de alfabetização adequado e consistente, assim como o programa educacional como um todo. E isso infelizmente não afeta apenas crianças de nível sócio-econômico inferior ou de escolas públicas.

Para resolver este dilema, os autores da 5ª versão do DSM resolveram adotar como um dos critérios diagnósticos a realização de uma prática educacional já presente nos Estados Unidos como política pública: a Resposta à Intervenção, também chamada de RTI (do Inglês, Response to Intervention). A princípio, a RTI surgiu para prevenir dificuldades de aprendizagem e comportamentais por meio da aplicação em sala de aula de instruções efetivas baseadas em evidências científicas. Porém, dentre os ganhos que estes programas instrucionais possuem, um deles é poder identificar com maior confiabilidade os alunos que persistem falhando apesar de submetidos às melhores práticas educacionais e que, portanto, possuem maior probabilidade de possuir um TA. Neste sentido, a RTI é uma fantástica ferramenta para responder a um dos critérios de exclusão dos TA: a falta de instrução adequada. Mas, voltando a pensar na realidade brasileira, imagino como a RTI poderá ser implementada aqui. Com tantas outras mazelas na educação, me pergunto quando os dirigentes educacionais se tornarão sensíveis a esta necessidade. E, enquanto isso, como os clínicos conduzirão uma avaliação completa e condizente com este novo critério do DSM? A princípio, imagino que as intervenções baseadas em evidência científica serão aplicadas em consultório individualmente ou em pequenos grupos durante um período anterior à avaliação diagnóstica. Ficou curioso para saber mais sobre a RTI¿ Ainda iremos explicar melhor e aprofundar sobre este assunto em outros textos!

Sobre outro critério, a persistência das dificuldades acadêmicas, em uma TA esta deve ocorre apesar de a RTI ser fornecida. É muito possível que, com diagnóstico precoce, intervenção de qualidade e conforme o nível de prejuízo, as dificuldades acadêmicas sejam minimizadas ou até deixem de ser percebidas em testes (isso pode ocorrer na fase adulta, com disléxicos chamados de “compensados”).  De qualquer forma, a prática científica e clínica têm confirmado que pessoas com TA possuem déficits em processos cognitivos, principalmente em habilidades metafonológicas, memória operacional, nomeação rápida e decodificação. Alguns experts sugeriram a inclusão de déficits cognitivos como critério para diagnosticar os TA, porém, a grande heterogeneidade de níveis e presença de prejuízos na Dislexia tornou esta proposta no momento invivável. Porém, a condução de avaliação neuropsicológica nos quadros de suspeita continua sendo fundamental para verificação das forças e fraquezas do funcionamento cognitivo dos sujeitos. Sendo assim, os quatro critérios para diagnosticar um TA podem ser resumidos em:

A. Definição das características-chave do transtorno

B. Mensuração das dificuldades presentes

C. Idade de início do transtorno

D. Critérios de Exclusão

Os sinais referentes ao critério A foram discutidos no post anterior e devem incluir a persistência das dificuldades apesar de intervenção específica (RTI). Na tabela abaixo, são apresentadas as características-chave dos TA:

dsm-5 TAs

O critério B deve ser verificado com verificação de prejuízos acadêmicos funcionais e a mensuração das dificuldades por meio de instrumentos normatizados e culturalmente adaptados para a faixa etária/escolar do avaliado. Sugere-se o ponto de corte de pelo menos 1,5 desvio-padrão abaixo da norma para a idade para que um resultado seja considerado deficitário e indicativo de um TA. Sobre o critério C, é importante ressaltar que desde os primeiros anos escolares os sinais de um TA já estão presentes, mas podem não ser totalmente manifestados até que as demandas escolares excedam as capacidades do indivíduo (especialmente nos casos em que os problemas maiores são fluência leitora e ortografia, por exemplo). Por fim, o item D permanece igual ao presente no DSM 4 e sugere que devam ser excluídos casos de deficiência intelectual, atraso global de desenvolvimento, má acuidade visual e auditiva, desordens neurológicas/mentais, falta de oportunidade acadêmica e adversidades psicossociais. Por fim, outra novidade foi a inclusão de uma classificação qualitativa dos níveis de severidade dos TA. Particularmente, achei esta proposta interessante e orientadora para o prognóstico e o trabalho educacional posterior ao diagnóstico. Além disso, elimina os antigos problemas de classificações arbitrárias nos níveis, que não seguia critérios objetivos. Abaixo, segue a descrição de cada nível:

niveis severidade

No geral, foi muita nova informação, não? Muito ainda será discutido e aos poucos este novo modo de pensar os TA será incorporado em nossa sociedade. Em contato que tivemos com a Artmed, a editora respondeu que até o final deste semestre o DSM 5 esteja traduzido e publicado aqui no Brasil, para deleite de todos.

Fontes:

– American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.

– Tannock, R. (2013). Rethinking ADHD and LD in DSM-5: Proposed Changes in Diagnostic Criteria. Journal of Learning Disabilities 46 (5), 5-25.

Novos critérios diagnósticos dos Transtornos da Aprendizagem – Parte 1

Ler, escrever e calcular com fluência é necessário à todas as pessoas em praticamente todas as culturas do mundo. A construção de sistemas linguísticos e matemáticos foi fundamental para a evolução do pensamento humano e, por isso, as crianças devem ser estimuladas a desenvolver estas habilidades acadêmicas. Como a aprendizagem é um fenômeno complexo e depende da harmonia de diversos fatores (psicológicos, familiares, sócio-culturais, pedagógicos e biológicos), quando há atrasos e falhas na aprendizagem escolar, uma avaliação cuidadosa de cada dimensão deve ser realizada. Nos casos em que a dimensão neurobiológica está afetada, as dificuldades de aprendizagem acadêmica são explicadas por um Transtorno da Aprendizagem (TA).

Para conhecer um pouco sobre o que é a Dislexia, o Transtorno de Aprendizagem da leitura, veja este breve vídeo. O Youtube disponibiliza legendas em Português para quem preferir. Os passos para ativar as legendas são esses: clicar embaixo da tela do vídeo em “legendas” > “traduzir legendas” > Selecionar o idioma “português” e clicar “OK”.

Em diversos países do mundo, os TA são reconhecidos, identificados e classificados em diferentes setores da sociedade: medicina, educação, defesa de direitos e leis. Apesar de existirem diversas propostas de definição e classificação dos TA, é consenso que estas condições existem. Com a evolução constante dos conhecimentos científicos e das práticas clínicas e políticas, é necessário que os maiores especialistas na área da saúde se reúnam periodicamente para revisar e discutir o que se sabe a respeito das diversas condições clínicas. E isso aconteceu recentemente na Associação Americana de Psiquiatria (APA), que em 2013 lançou nos Estados Unidos a 5ª versão do Manual de Diagnóstico Estatístico das Doenças Mentais, chamado DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Vou abordar aqui alguns problemas relacionados aos critérios antigos do DSM 4, as discussões feitas durante a elaboração do DSM 5 e as modificações propostas para melhorar o processo diagnóstico. Além disso, vale também refletir sobre como os novos critérios vão modificar a prática de profissionais que trabalham com os TAs. Como o tema é longo, a discussão foi dividida em 2 textos no blog.

No DSM 4, os TAs eram classificados em quatro tipos: Transtorno de Leitura, Transtorno de Matemática, Transtorno da Expressão Escrita e TA sem outra especificação. Uma das críticas dessa classificação é a separação rígida dos TA em domínios, quando se percebe tanto na prática clínica e de pesquisa que os prejuízos de leitura, escrita e matemática são frequentemente presentes em conjunto. Por exemplo, o domínio matemático é certamente influenciado pelo desenvolvimento de habilidades de linguagem e de leitura (consciência fonológica, compreensão de problemas, memória auditiva breve, nomeação de sinais gráficos, etc). Quando se diagnostica um Transtorno de Leitura, quais são as habilidades de fato afetadas: acurácia, compreensão, fluência, decodificação ou velocidade leitora? No caso dos Transtornos da Matemática: senso numérico, cálculos aritméticos, raciocínio matemático ou resolução de problemas? E, por fim, no caso dos Transtornos da Escrita: erros gramaticais, de organização de ideias, de pontuação, de ortografia ou de caligrafia? Estudos mostraram que 75% das crianças com Transtorno de Escrita e 50% das crianças com Transtorno de Matemática também preenchem critérios para Transtorno de Leitura. Além disso, pesquisas feitas em famílias com gêmeos idênticos têm identificado material genético comum e sobreposto aos transtornos nas 3 habilidades acadêmicas. Logo, devido às altas taxas de comorbidade (presença de mais de um quadro no mesmo sujeito) dos TAs e à existência de base genética comum aos prejuízos nos diferentes tipos de TA, o DSM 5 propôs a nomeação dos TA como uma única categoria, os Transtornos Específicos da Aprendizagem. Os TA serão agora descritos pelos prejuízos a eles associados, e não mais delimitados como exclusivos para Leitura, Escrita ou Matemática. A princípio, eu particularmente fiquei receosa com a possibilidade de que os termos tão conhecidos “Dislexia”, “Discalculia” e “Disgrafia” fossem abolidos. Porém, como são muito descritos e utilizados em pesquisa e na prática clínica (principalmente de países europeus e latinos), o DSM 5 sugere que estes termos possam ainda ser usados. A especificação das sub-habilidades prejudicadas em um TA também tem suas vantagens práticas: 1) facilitará a comunicação mais próxima entre a saúde e educação, pois os especialistas deverão ser cuidadosos em listar os domínios acadêmicos prejudicados e forneceram informações mais úteis aos educadores que trabalharão com a intervenção e 2) provavelmente impulsionará um campo de pesquisas para construção de testes e procedimentos de avaliação neuropsicológica/psicopedagógica/fonoaudiológica para cada subdomínio de habilidades que o DSM 5 exige.

Outra crítica feita ao DSM 4 refere-se ao critério de diferença substancial de 2 desvios padrão entre as medidas de testes de desempenho (leitura, escrita e matemática) e de testes de Inteligência (QI). Este critério era adotado para diferenciar as dificuldades de leitura causadas por atrasos cognitivos gerais (Deficiência Intelectual) das dificuldades que são de fato decorrentes de um TA. Porém, muitas crianças com TA podem apresentar desempenho menor em testes de inteligência que avaliam habilidades acadêmicas como um dos fatores que compõem a inteligência, o que favorece a identificação de TA apenas nas crianças com alto desempenho intelectual. Além disso, o uso de um critério estatístico para estabelecer uma diferença substancial acaba sendo arbitrário e não necessariamente reflete o real funcionamento do sujeito em seu ambiente.  Por exemplo, pesquisas que compararam crianças com TA em grupos com e sem discrepância entre QI-habilidade verificam que não há diferenças de grupos em funções cognitivas necessárias ao bom desempenho acadêmico. Ou seja, crianças com e sem discrepância e diagnosticadas com TA possuem prejuízos similares em consciência fonológica, memória breve auditiva e decodificação.

Além disso, estudo recente de neuroimagem não encontrou diferenças no padrão de ativação cerebral de crianças disléxicas com e sem discrepância QI-desempenho. Ambos os grupos apresentam o mesmo padrão de ativação reduzida nas regiões cerebrais parietotemporal e occiptotemporal. A linha de estudos genéticos também não tem encontrado diferenças entre alterações de genes conforme a presença de diferença substancial entre QI-desempenho. Integrando todas estas informações, chegou-se à conclusão que o critério de discrepância não é fundamental para diagnosticar os TA. Apesar disso, a presença de TA não é considerada nos casos em que a avaliação verifica deficiência intelectual. No próximo post, vamos abordar com mais detalhes outros aspectos que o DSM 5 propõe como critérios para os diagnósticos de TA.

Fontes:

– American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.

– Tannock, R. (2013). Rethinking ADHD and LD in DSM-5: Proposed Changes in Diagnostic Criteria. Journal of Learning Disabilities 46 (5), 5-25.

Por que integrar Neurociências e Educação?

Atualmente, com o avanço da ciência e tecnologia, muito tem sido descoberto sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro. Porém, se o conhecimento derivado das diversas pesquisas não alcançar a sociedade e não melhorar a qualidade de vida das pessoas, todo o esforço científico será em vão. Por isso, integrar conhecimentos de diferentes áreas que estudam a aprendizagem e desenvolvimento humano – educação, biologia e ciências cognitivas –  é a proposta da Neurociência da Educação (também chamada de Neuroeducação ou Mind, Brain and Education, nos países de língua inglesa). Dentre as principais descobertas científicas, destaca-se a possibilidade de visualizar o funcionamento cerebral on-line com técnicas de neuroimagem, o mapeamento genético detalhado e os procedimentos de avaliação cognitiva desenvolvimentos pela Neuropsicologia.  Com a possibilidade de observar biologicamente os processos de aprendizagem, podemos agora verificar o impacto de intervenções educacionais no funcionamento cerebral e cognitivo, ao invés de contar apenas com os tradicionais e questionáveis métodos de avaliação escolar.

Considerando que a educação tem papel fundamental na aprendizagem de múltiplas habilidades e conhecimentos culturais que foram construídos há milhares de anos por diferentes civilizações, os neurocientistas da educação têm grande interesse em entender melhor como desenvolvemos habilidades para manipular as ferramentas culturais da linguagem escrita e numérica, além de construir melhores procedimentos de ensino considerando o processamento linguístico e matemático. Também são alvos de grande interesse e dedicação destes pesquisadores os transtornos do neurodesenvolvimento e da aprendizagem, como o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH), a Dislexia, a Disgrafia e a Discalculia.

Imagem

Para que as principais questões relacionadas à mente, cérebro e educação sejam estudadas, é muito importante uma interação recíproca entre as práticas dos pesquisadores e dos educadores. É necessário contínuo esforço de ambas as partes para que os cientistas entendam e colaborem diante dos reais problemas vividos pela educação, assim como os educadores do nosso país busquem atualização e capacitação científica que auxilie o ensino. Os cientistas precisam conduzir mais experimentos que auxiliem no entendimento de situações da vida real (e não apenas dos laboratórios). Dos educadores, o esforço surge com o questionamento crítico dos métodos de ensino e a adoção de práticas educacionais com evidências científicas comprovadas. Uma vez que a aprendizagem é um fenômeno muito complexo e influenciado por diversos fatores, a pesquisa científica e a prática educacional sempre enriquecem uma à outra, pois a ciência auxilia o educador para melhor ensinar e a educação contribui em sua complexidade para alimentar novas curiosidades e temas de pesquisa sobre a aprendizagem. 

Reconhecendo o valor das visões filosóficas e ideológicas e educacionais mas indo para além delas, várias áreas do conhecimento têm avançado na compreensão da aprendizagem e desenvolvimento humano, bem como das práticas em sala de aula; dos processos cognitivos relacionados à leitura, escrita e matemática; dos ambientes potencializadores da aprendizagem e; por fim; dos aspectos motivacionais. Em alguns países, estes conhecimentos científicos têm auxiliado a tomada de decisões inteligente em políticas públicas educacionais (o que ainda não é o caso do Brasil, infelizmente), no lugar de achismos, modismos e ideologias ultrapassadas.   

É importante considerar também que, mesmo sendo uma ferramenta valiosa para melhorar a educação, a ciência em si mesma está longe de ser a única fonte de respostas para os problemas educacionais. Vivemos em um mundo com dilemas éticos/morais e sócio-econômicos difíceis que também afetam o modo como as crianças se desenvolvem e aprendem. A ciência é um campo de conhecimento jovem e as neurociências são ainda bem recentes, com maior avanço nas últimas décadas. Por isso, entendemos que as sociedades atuais caminham para a criação de práticas multidisciplinares, éticas e baseadas na compreensão holísticas do desenvolvimento humano.

Neste panorama, o blog Sinapse Aprender tem como propósito fazer um link de como se pode tirar proveito prático daquilo que é estudado nos laboratórios de pesquisa em neurociências e educação. Serão abordados temas relacionados principalmente ao desenvolvimento cognitivo, avaliação e intervenção nos transtornos de aprendizagem, métodos de ensino e práticas educacionais baseadas em evidências científicas. Espero que as informações disponibilizadas sejam úteis e colaborem com o seu crescimento profissional e pessoal!

 Fonte: Fischer, K.W.; Daniel, D.B.; Immordino-Yang, M.H.; Stern, E.; Battro, A.; Koizumi, H. (2007). Why Mind, Brain, and Education? Why Now? Mind, Brain, and Education, 1 (1), 1-2.